badge

terça-feira, julho 25, 2006

Ensaio sobre a Dor

Comecei pelas nádegas. Removendo finas camadas de pele com ajuda do ralador. Expondo a carne viva ao sol da manhã.
Arranquei as unhas com um alicate. Com a faca de cozinha golpeei o peito aleatoriamente. Continuando amiúde pelos braços e pernas.

Quando me cansei, reguei o corpo com um líquido inflamável e irritante. E acendi um cigarro.
Fumei-o vagarozamente por entre as chamas e o cheiro. Até eu ser todo dor.

Assim, não tens como me magoar mais.

terça-feira, julho 18, 2006

(Não me convides)*


Não me convides pra jantar. Não vês que ele está no estrangeiro? Claro que não aceito!

Não me faças esperar por ti. Sabes que odeio atrasos. Não adivinhes o que me apetece jantar. Não digas que estou mais bonita. Não me ajeites as pontas rebeldes do cabelo. Não me olhes assim tão fixamente nos olhos. Não me faças esse olhar.

Claro que não vou subir até ao teu andar! Leva-me a casa! Não gosto de chá. Não enchas tanto o copo com esse vinho.

(Não achas que já bebi o suficiente?)

Não te aproximes tanto de mim. Este sofá é pequeno demais para nós dois.
(Não me abraces.)

Não consigo respirar. Não digas "Amo-te" ao ouvido. Não me desapertes o soutien. Não me toques aí!

Não me beijes os seios assim, que deixa marca, e ele não tarda voltará do estrangeiro.






* - ou "Não há pior cego que o que não quer ver-me." (pg 174)

PS - referência a crónica "Da vida das marionetas" pg 51, terceiro livro de crónicas de António Lobo Antunes.

terça-feira, julho 11, 2006

O comboio chamado Tempo



Pára! - grito.
Pára Porra!! - ordeno ao comboio que teima em partir, ignorando as minha súplicas. Mesmo depois de pontapear as portas.

E fico a ver-te desaparecer. A fundires-te com a paisagem do passado, com o vestido florido que te ofereci em tempos.

A viagem prossegue. E eu continuo fechado dentro deste comboio chamado Tempo. Ele segue, acelerando. Atravessando os acontecimentos que passam lá fora. Os primeiros beijos. As viagens. As paixões, amores e os fins amargos. Muitas das vezes não os consigo focar, tal é a velocidade a que eles passam sobre mim, e perdem-se. Outros demoram muito tempo a passar. O comboio vê-se obrigado a abrandar (mas teima em não parar) e leva os meus vários eus a perder a paciência. (Uns sentados á janela, outros de pé) "Todos temos tarefas importantes a cumprir! Não podemos ficar parados neste acontecimentos."

No display a informação intermitente:

"próxima paragem...

felicidade..."


E adormeço de cabeça encostada ao vidro, mergulhado num sono hipnótico de linhas dos carris ao lado. Carris de outro comboio chamado Tempo. Tempo que não é o meu.
(Talvez seja este o comboio que esperas)

Para acordar e ver-te desaparecer.
A fundires-te com a paisagem do passado. Com o vestido florido que te ofereci em tempos.

domingo, julho 02, 2006

Little Boy

Hoje decidi recolher todos os pedaços.
Procurei por todas as divisões da casa. Encontrei alguns nuns lençois por lavar. Na sala. Na porta de entrada.
Saí de casa á procura das peças que faltavam. Encontrei algumas em jardins, cafés, bares e ruas. Mas nunca consigo formar o puzzle todo! Faltam sempre peças.

Lembras-te do truque de magia? Quando te ofereci este presente em frente ao rio? Disseste-me que o tinhas guardado algures, "dentro de uma caixinha".
Pois queria que fosses a esse algures buscar a caixinha. E juntamente com a caixinha os pedaços que me faltam.

Para poder apaixonar-me de novo... e deixalo solto por aí, sem trela.

A Inchar-se de afecto.

Até rebentar de novo... e eu procurar nas divisões da casa, nos lençois por lavar. Na sala. Na porta de entrada. Nos jardins, cafés, bares e ruas...

Foi como das outras vezes.

Era como das outras vezes.
Os metros teimavam em não chegar. Um instante era demasiado tempo quando não estava contigo. As pessoas metiam-se á frente, não se desviavam... as safadas. E perdia o metro da linha seguinte. Vendo-o desaparecer pelo tunel. Acenando-me um adeus para me provocar.
A luz vermelha a desaparecer no tunel. E eu a lembrar-me quando disseste "...atingir o extase do desejo...enquanto o tempo pára e o mundo deixa de existir..." mesmo antes de "o tempo parou e o mundo deixou de existi, e eu sou tua..." e de como soou tão perfeito na altura.

Naquele dia era como das outras vezes...não fosse aquele sabor que não me saía da boca. Já há muito que não tinha notícias tuas. Tinhas misteriosamente desaparecido. Nada visto antes.

Beijava-te o ombro e cobria o teu corpo despido com a palma da minha mão. E tu Estou triste... e eu Porquê? e tu Tenho saudades tuas e eu Mas como? Se estou aqui! e tu Sinto como se já tivesses ido embora...
Foste tão doce nesse dia que temi pelo historial diabético da minha família. Beijei-te e disse:
- Pareces de porcelana!
- Mas eu sou de porcelana, não percebes?
- és cristal...no mínimo. Porque brilhas.

Era como das outras vezes. Eu subia a escadaria da estação e tu já estavas á minha espera dentro do carro. Estavas feia naquele dia. Os teus olhos eram pesados e tristes como o chumbo dos caixões. Fizeste um esforço para sorrir. Não resultou. Começaste com um discurso feito que me fez perder o seguimento das coisas e voar para aquele mundo meu. Em momento de mundial lembrei-me da perdida do avançado e do comentário do jornalista:
"Teve medo de ser feliz!"

Eu, a olhar para ti. Os teus olhos de chumbo. Os lábios a moverem-se. E o eco na minha cabeça:
"Teve medo de ser feliz!"


Pedi para irmos para o banco de trás, falar. Pedi para me deitar no teu colo. Não pedi para passar a mão na tua coxa. Fiquei a um centímetro dos teus lábios. Beijei-te. Beijaste-me de volta. Afastaste-te.

- Cheiras...sabes tanto a tabaco!

Não era tabaco, era o sabor amargo do fim.