badge

sábado, fevereiro 25, 2006

"Caçador de Infâncias"

6ª

52ª entrada no Caderno Azul :

AMG - Como se conjuga o delírio com o rigor?

ALA - A solução está na visita de Eça a Antero. Ele estava a destruir poemas. Agarrava as folhas, dobrava-as muito bem vincadas, depois em quatro e só então cortava à faca com cuidado.
O Eça perguntou-lhe porquê e ele respondeu:
"porque até no delírio é necessária ordem."

[...]

O meu editor francês, Christian Bourgois, esteve a morrer com um cancro e suportou as coisas com uma enorme serenidade.
Um dia eu disse à mulher:
"O teu marido foi de uma coragem extraordinária". E ela respondeu-me:
"Não é coragem, é elegância".
A cobardia é de uma deselegância total.
Isso vi na guerra: um oficial a borrar-se de medo.

[...]

Qual o melhor crítico de Teatro?
O rabo.

Quando não nos dói, a peça é boa.
O melhor crítico musical é a espinha: Quando sinto arrepios, a música é boa.
Com a literatura será diferente, porque não são possíveis orgasmos ao longo de 300 páginas.
O certo é que escrever cansa, cansa o corpo.


Caderno Azul
[...]

Posso aceitar a infidelidade no Amor, não na amizade.
A morte de um amigo é uma ferida aberta.
Uma mulher podemos "substituí-la" por outra, às vezes.
Acho que era o António Lobo Antunes que dizia que são precisas muitas mulheres para esquecer uma mulher inteligente.


AMG - Isso é um pouco cruel...
ALA - Um afecto sem objecto é tão doloroso...A amizade, como o Amor, é feita de atenção. Perdemo-nos por pequenas coisas e um belo dia acordamos ao lado de um estranho. Um livro acaba assim, enjoa-se de nós. Tentamos corrigir e ele não quer, a gente estende a mão e ele encolhe o braço.

AMG - O Amor tem esse lado de idealização?
ALA - Porque gostamos de uma pessoa que inventámos a partir dela.

[...]

"Escrever consiste em trazer para cima", cavar.

in Revista 6ª. Entrevista a António Lobo Antunes por Ana Marques Gastão.



Caçador de Infâncias

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Virar a dor pelo avesso




Ele fecha os olhos. Ele abre os olhos. Rebola sobre si mesmo entre os lençóis.
As vozes dentro da cabeça. As últimas frases. As próximas palavras.
Todas as realidades. As paralelas e as perpendiculares oblíquas. Todas as possíveis intercepções. A cota de frieza, a abcissa de esperança.
O que dizer nesse momento? Como responder da melhor forma? Como fingir que se está bem?

Os suores... os gemidos. As frases sujas. As imagens incessantes a ecoar nos lóbulos.
Ele morde a almofada. Contorce-se sobre a dor que sente na barriga. Fórça uma lágrima que nunca vem. Arranha o colchão...desfaz a cama.

Ele Abre os olhos... Desiste de sonhar.



Levanta-se e vai até à sala.
Ele acende uma vela. Liga o PC e tenta escrever algo.
Ele escreve uma palavra. Ele apaga a palavra. Ele levanta-se. Ele anda em círculos. Ele pára...
e fica longos minutos a observar a chama. A forma como ela adapta-se à sua respiração. Como é sedutora. E chega à solução das suas noites atribuladas.

Para eliminar todos os fragmentos da sua cabeça. Para deixar de inventar e reinventar todos os filmes com ela, teria de deixar de dormir. De forma a abdicar da faculdade de sonhar.

Ficou o que restou da noite a contemplar a chama da vela.

Tomou banho. Vestiu-se com a mesma roupa de sempre. Desceu a rua. Entrou no café junto à estação. Pediu um café. Bateu com o pacote contra a mesa, para sacudir o açucar. Abriu o pacote e, quando está a despejar o conteúdo para dentro da chávena, repara no escrito.

42ª entrada no Caderno Azul : " Não me dou por vencido. Acredito em Xeques-mates. "
Pacote de açucar da Delta, 24/12/2005


...o açucar cai pela chavena e mesa, rumo ao chão. Bebe o café amargo. Apanha o comboio seguinte.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Sem Aviso

Anda
tira essa dor do peito, anda
despe essa roupa preta e manda
seu corpo deslembrar

Canta
vira dor pelo avesso
Canta

larga essa vida assim as tontas
Deixa esse desenganar

Calma
Dê o tempo ao tempo, calma
alma
Põe cada coisa em seu lugar
E o dia virá, algum dia virá
Sem aviso


então...


Maria Rita - Sem Aviso

by Francisco Bosco / Fred Martins