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quinta-feira, setembro 28, 2006

Teatro do absurdo

Hoje encontrei-o de novo.
Estava sentado do lado da janela, com a mão apoiando o queixo.
Um senhor de meia idade que é uma mistura de ex-militar com ex-elemento de banda filarmónica e pica nas horas livres. Era muito habitual dar de caras com ele (ou a pessoa que ele finge ser) na estação do Rossio. Mas isso era antes de o túnel meter água.
Ultimamente vi-o muito poucas vezes. Na sua tentativa de passar-se por pica. Pedindo os bilhetes aos passageiros e acenando com a cabeça. Por vezes tinham um apito. E usava-o mesmo antes de as portas do comboio se fecharem. Como que para mostrar quem manda. Que agora que ele tinha apitado, podíamos todos seguir viagem.
Sempre com a mesma farda e boina azuis. Por vezes com uma máquina fotográfica inutilizada. Fotografando os passageiros. Registando a sua existência no triste quotidiano.

Mas hoje, nada. Nem o apito, nem me pediu o bilhete, nem um disparo inútil. Hoje ele estava sentado, acelerando (como todos nós) para o começo do dia. E reparei que apesar da mesma farda azul algo era novo nele. A testa rugada. O cabelo grisalho. Os olhos claros. Tornavam a comparação com o dramaturgo Samuel Beckett inevitável.
O bolso do casaco estava cheio de canetas de todos os tipos. O que me fez pensar se ele seria o escritor de todo aquele comboio de vidas.

«O cheiro dos cadáveres, que distingo nitidamente por baixo do da erva e do húmus, não me é desagradável, talvez um pouco adocicado de mais, um pouco enebriante, mas mil vezes preferível ao dos vivos, dos seus pés, dentes, sovacos, cus, prepúcios peganhentos e óvulos frustrados.»[1]

«Naquela altura eu não percebia as mulheres.
Aliás, agora também não.
Nem os homens. Nem os animais.
O que percebo melhor, e não é dizer muito, são as minhas dores.»[1]

E que viaja todos os dias naquele comboio, de apito na mão, pedindo bilhetes, tirando fotos... para nos lembrar que a nossa história está escrita e é um teatro do absurdo. Como qualquer conto Beckettiano.



[1] - in Primeiro Amor de Samuel Beckett.



PS - fragmentos de novo post no caderno azul...

sábado, setembro 16, 2006

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada



Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor


Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver


Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual


Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal



Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser


Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal



Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti


Um Adeus Português, de Alexandre O'Neill.


PS - Se é para ser lamexas...aos menos que seja bom. Esta é uma lição de lamexice.
Novo post para breve...