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domingo, março 19, 2006

Dia do Pai

Foi há algum tempo, não sei precisar quanto, mas era hora de jantar. Estava o meu Pai no lado norte da mesa, a minha Mãe no oeste, eu no sul e a Tv no telejornal.

Por algum motivo, uma notícia ou algo que tenha dito, o meu Pai começou a contar o seguinte.

"Antigamente. Quando o Pai tornava-se velho e não servia para nada. O filho levava-o para uma cabana, bem longe. Levavam o dia inteiro a chegar. Depois, dizia para o Pai entrar e despedia-se deixando um cobertor. Ficando o Pai e o cobertor na cabana, até os lobos virem.
Um dia. Quando outro filho levou por sua vez o Pai para a cabana, ao entregar-lhe o cobertor, o pai rasgou-o ao meio e deu-o ao filho dizendo, toma é para quando práqui vieres."

Apesar de os esconder com a mão, sei que caíram "escamas dos olhos" do meu Pai. Nunca cheguei a saber o fim da história.


Foi ao ler o mais recente livro de José Saramago que me lembrei dessa história.

«Era uma vez, no antigo país das fábulas, uma família em que havia um pai, uma mãe, um avô que era o pai do pai e aquela já mencionada criança de oito anos, um rapazinho. Ora sucedia que o avô já tinha muita idade, por isso tremiam-lhe as mão e deixava cair a comida da boca quando estavam à mesa, o que causava grande irritação ao filho e à nora, sempre a dizerem-lhe que tivesse cuidado com o que fazia, mas o pobre velho, por mais que quisesse, não conseguia conter as tremuras, pior ainda se lhe ralhavam, e o resultado era estar sempre a sujar a toalha ou a deixar cair comida ao chão, para já não falar do guardanapo que lhe atavam ao pescoço e que era preciso mudar-lhe três vezes ao dia, ao almoço, ao jantar e à ceia. Estavam as coisas neste pé e sem nenhuma expectativa de melhora quando o filho resolveu acabar com a desagradável situação. Apareceu em casa com uma tigela de madeira e disse ao pai, A partir de hoje passará a comer daqui, senta-se na soleira da porta porque é mais fácil de limpar e assim já a sua nora não terá de preocupar-se com tantas toalhas e tantos guardanapos sujos. E assim foi. Almoço, jantar e ceia, o velho sentado sozinho na soleira da porta, levando a comida à boca conforme lhe era possível, metade perdia-se no caminho, uma parte da outra metade escorria-lhe pelo queixo abaixo, não era muito o que lhe descia finalmente pelo que o vulgo chama o canal da sopa. Ao neto parecia não lhe importar o feio tratamento que estavam a dar ao avô, olhava-o, depois olhava o pai e a mãe, e continuava a comer como se não tivesse nada que ver com o caso. Até que uma tarde, ao regressar do trabalho, o pai viu o filho a trabalhar com uma navalha um pedaço de madeira e julgou que, como era normal e corrente nessas épocas remotas, estivesse a construir um brinquedo por suas próprias mãos. No dia seguinte, porém, deu-se conta de que não se tratava de um carrinho, pelo menos não se via sítio onde se lhe pudessem encaixar umas rodas, e então perguntou, Que estás a fazer. O rapaz fingiu que não tinha ouvido e continuou a escavar na madeira com a ponta da navalha, isto passou-se no tempo em que os pais eram menos assustadiços e não corriam a tirar das mãos dos filhos um instrumento de tanta utilidade para a fabricação de brinquedos. Não ouviste, que estás a fazer com esse pau, tornou o pai a perguntar, e o filho, sem levantar a vista da operação respondeu, Estou a fazer uma tigela para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos, para quando o mandarem comer na soleira da porta, como fizeram ao avô. Foram palavras santas. Caíram as escamas dos olhos do pai, viu a verdade e a sua luz, e no mesmo instante foi pedir perdão ao progenitor e quando chegou a hora da ceia por suas próprias mãos o ajudou a sentar-se na cadeira, por suas próprias mãos lhe levou a colher à boca, por suas próprias mãos lhe limpou suavemente o queixo, porque ainda o podia fazer e o seu querido pai já não.»


in As Intermitências da Morte de José Saramado.

quinta-feira, março 02, 2006

Teatro "AZUL A CORES"



“Sabes aquilo que se diz, a cara-metade? A minha cara-metade? E se a pessoa que nos completa é mais do que a nossa metade? Se sem ela somos um terço, ou um quarto, ou menos? E se a nossa cara-metade for bastante mais que a nossa metade? Se for demais para nós? E se em vez de nos acrescentar, ela nos tira?



"Deus deu-nos o dom de magoar os que nos são próximos porque sabe que os que nos são próximos nos vão desiludir"

Filipe Homem Fonseca, Azul a Cores




AZUL A CORES de Filipe Homem Fonseca

Sala Estúdio do Teatro da Trindade em Lisboa
22 de Fevereiro a 12 de Março
4ª a sábado às 22h e domingo às 17h