Su doku
Olho para o rio e não te vejo. Procuro-te no rasto dos cacilheiros... nas minhas chagas, e não te encontro. Quem me vai apagar o cigarro agora? Era suposto teres chegado. Era suposto já cá estares há meses. Preciso da tua música! Dos teus compassos. Dos teus sorrisos fusos, colcheios... semibreves a 4 tempos.
O vento abraça e a porta abre-se. O frio rompe pelo palácio de Sta. Catarina dentro. Os menus voam, as revistas folheiam-se sozinhas. Está um belo dia.
Uma jovem entra na sala e pára em frente ao piano. Experimenta teclas. A princípio aleatoriamente. Que depois foram tomando sentido e formando melodias.
Estou a 3 páginas de terminar o livro que tenho á minha frente. "Inventar a Solidão" de Paul Auster. Um livro sobre histórias do contador de histórias. Que, por demorar tanto a le-lo, tornou-se num outro...livro meu. No Inventar da solidão que era a minha. Um livro com histórias minhas, dentro das histórias...das histórias do contador de histórias. pág. 163 «e descobriu que todas as teclas estavam em perfeitas condições. Todas, excepto uma: o fá por cima do dó central.» Enquanto a jovem toca...uma corda que parte, uma tecla que deixa de tocar, um ciclo que termina.
Apago a beata na areia e digo para comigo.
- É o último. Agora o meu vício és tu.
E tu, alheia, continuas a fitar o mar ignorando os cabelos rebeldes que se prendem nos teus lábios...te invadem as orbitas, ao compasso do vento. Ficamos horas a olhar o mar nesta tarde de Outono.
Pegas no «Público» e escreves algarismos nas pequenas quadrículas vazias. Vais-me explicando as regras do jogo.
- Sabes, nunca gostei muito de praia. -disse eu.
- Talvez nunca tenhas sido ensinado a gostar.
Empurro-te contra a areia fria, e o ar enche-se de gargalhadas. Rebolamos. O sol esconde-se.
Enquanto te beijo, fazes questão de manter os olhos abertos. "Para ver as estrelas", afirmas tu. Beijo-te mais uma vez. De olhos fechados. Não preciso de os abrir porque, sei que tenho «O Céu dentro de ti»[1].
«Ele acorda. Ele anda de um lado para o outro entre a mesa e a janela. Ele senta-se. Ele levanta-se. Ele anda de um lado para o outro entre a cama e a cadeira. Ele deita-se. Ele fixa o tecto. Ele fecha os olhos. Ele abre os olhos. Ele anda de um lado para o outro entre a mesa e a janela.
Ele pega noutra folha em branco. Põe-na na mesa à sua frente e escreve estas palavras com a sua caneta.
Foi. Nunca mais voltará a ser. Lembra-te. »
(1980-1981)
in "Inventar a Solidão" de Paul Auster.
[1]- "O Céu dentro de ti" de Graça Gonçalves.
Para B.