badge

terça-feira, setembro 06, 2005

Laughing at the Blues

Sacudo a camisa para disfarçar o cheiro a naftalina, eucalipto e outras especiarias que a minha mãe teima em colocar no roupeiro.
Olho para o espelho e penso em desfazer o penteado. O gel teima em não ficar bem nestas alturas.

Desço a rua em passo de corrida. As axilas mancham a camisa, da testa escorrem goticulas de ansiedade, toco á campainha.
Apesar de ter os passos todos estudados (beijo na testa...frase cómica) o teu brilho ofusca-me e desmonta-me o "personagem". Os teus lábios fazem música contra as minhas faces rosadas. Do habitual estilo sóbrio e encanto natural, vejo-te agora com um decote de "Angola á contra costa" e saia curta.
Enquanto me contas o teu dia, faço um esforço heróico para não olhar para esse imenso vale entre os teus seios. Apanhamos o comboio em corrida e dou-te uma chapada no rabo, enquanto sobes os degraus para a carruagem. Olhas de esgueira com um sorriso matreiro.

- Desculpe Senhor, porque pequei! - respondo eu.

Chegámos á ZDB mesmo a horas. Depois dos habituais pedidos para desligar os telemóveis, a sala escurece. Achei a altura perfeita para satisfazer a minha curiosidade. Para apreciar o teu decote e tudo o que ele oculta. Não fosse, obviamente, demasiado escuro para ver o que quer que seja.

A peça começa, o actor desmonta-se e desmonta-nos com isso. Alguns elementos do público abandonam o espectáculo sem o perceber. Sem entender que no momento em que o actor colapsa a peça começa.
As gargalhadas sucedem-se, descoordenadas, solitárias por vezes. É aqui que o jogo Actor-Público começa. Mas o público não sabe que está a jogar.

Olho para ti e sorris de olhos postos no palco. O teu sorriso ilumina-me mais que qualquer foco, que qualquer folow naquela sala.

"Dois tubarões encontram-se no imenso oceano. E nesse preciso momento sabem
que têm de amar-se. Consumam o seu amor.
Não sei se sabem mas, os tubarões
têm uma forma peculiar de se amar. O coito é demorado, o macho enrola-se na
fêmea e seguem assim por Kms. Porque se um tubarão pára, morre. Deixa de
respirar. E assim foi. Os dois tubarões permaneceram juntos, atravessando
oceanos.
Quando terminaram, a fêmea dá á luz três crias. Mas todo aquele
sangue desperta o instinto animal, predador, do tubarão. Numa dentada desfez as
crias em pedaços.
Quando termina, a fêmea está de olhos fixos nele. Através
daquele mar escarlate ele observa-a, atónito. Sem crer no que acabara
de cometer. E assim ficaram os dois tubarões a olharem-se, a afundarem-se no
oceano profundo, parados. Até morrerem."



O actor ri-se ás gargalhadas. Ri-se com a capacidade de chocar o Público. De provocar o riso com a mais triste das histórias. Depois volta a desmontar-se. A fazer-nos crer nisso.
Esconde a cara dos focos de luz. Pergunta o nome de quem está na ultima fila. De quem se ri quando ele se esquece das deixas. De quem se ri quando ele chora desesperado. Que permanece na sala quando todos saem, com a sua gargalhada:

- Há! hahaha...Há! hahaha!

Saímos da sala e cobres o decote com o teu casaco de malha. Bolas!
Supostamente a noite terminaria aqui, pelo menos para nós. Mas consigo convencer-te a ir até ao Bicaense, para uma noite de Jazz ao vivo.
Passeamos perdidos em ruelas e bares, e eu perdido em ti.

Entramos no Bicaense, sentamo-nos numa mesa no fundo da sala. Peço duas imperiais. Puxo de um cigarro enquanto a mesa está vazia.
Fixamos os olhos um no outro. Os copos descansam na mesa que nos separa. Chocam um no outro motivados pela vibração da bateria e saxofone. O cigarro consome-se.

- E se te beijasse agora? - pergunto eu, convencido de uma reacção parecida á minha de há 2 anos.

Perdi a noção do tempo quando os teus lábios predadores perseguiram os meus, num longo e profundo beijo.
Quando tornei a abrir os olhos a imperial tinha morrido, a musica acabado.

Não perguntei se era correcto. Não te preocupaste em responder. E seguimos bar fora de braço dado e cegos de desejo.
Adormecemos num qualquer banco, á espera do primeiro metro do dia.



Agora que escrevo a negro sobre as paginas azuis (como eu) deste caderno...sei que nada disto aconteceu.
E quase que oiço uma voz ao fundo. Na ultima fila.

- Há! hahaha...Há! hahaha!