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domingo, novembro 09, 2003

Pelo início...pelo início não, Pelo Antes.

Podia começar pelo primeiro grande erro que cometi. Daqueles históricos...Mónica Lewinsky, os treinos da CIA, a invasão da Polónia...ou quase. Mas não...prefiro começar plo antes. O imediatamente antes. Aliás! Todos ouviram falar do BigBang, mas...e antes? Aí uns falam em Deus...o "Homem de letra grande"...esse grande piromaníaco que nos condenou a todos, só com uma faísca. Um infinito nada.

Um som irritante ecoava na minha cabeça. Danos colaterais de uma noite de arromba. Pouco resta das imaculadas toalhas de hotel. São as donas do excesso, agora. Do nosso excesso. Tostas mistas, caviar e o hotdog do indiano da esquina. Percorro-te com os olhos. Desde os pés de equilibrista(com que fintas a dor alheia, o coração que partiste) até ao teus cabelos negros, que passeiam pelo pescoço e ombros e jazem rendidos, sob os seios. Exploro-te como tantos o fizeram. Exploras-me como o fazes sempre, e gosto. Imagino-me a beijar-te a testa...a despertares. O teu belo sorriso pintado a cores de verão. Desenhado com o meu desejo. Mas prefiro deixar-te assim. Deixar-me assim. Deixar-nos. E ficar, apenas e só, a contemplar-te.

«Hó Zé!... Eu sei muito bem a que horas entras hoje!
Já viste as que horas são?»
«Claro que SEI!!!!»- digo-o instintivamente.
O som que julguei ser facto de sonho é, agora, real... o HUNNN HUUNNN ou TOOO TOOO. Não há (à custa destes cinco) letras suficientes que o consiga descrever.
Esgueiro-me e, enquanto o faço calar, aproveito para ver que horas são.
«10 prás 8!!!» - prossigo eu, não dando muita importância ao que a minha mãe diz.
«Pois! Já Vais perder a aula!»
Visto-me a pressa. Não me é muito difícil escolher a roupa, é a mesma de ontem. Pego na mochila tal como está. E deixo-a assim como fica...desleixada. Como um relógio qualquer de um quadro de Dali, derretendo-se...a escapar-se do meu corpo mas estando eternamente entranhada em mim. Só quando a visto é que ela toma o seu sentido. É que ela passa a ter sentido.
E saio de casa batendo a porta não sem antes dizer - « Venho tarde! » - Já desço as escadas quando oiço «Porque não comes nada?» seguido de «Se voltas a bater assim com a porta, nem sabes para onde te hás-de virar!!» habituais.
Penetro neste amontoado de jaulas de cimento, de vidas encaixotadas em betão e aço, de kms de asfalto e calçada onde cada dia escorre jorros de sangue dos que não se vergam. Dos que não respeitam a lei da rua. O "não estrilha!!". E, antes de acelerar o passo, coloco a minha protecção. O que me impede de adoecer. De deixar que tudo isto me corrompa. O meu látex. Que me protege de ondas, decimeis exteriores.

Ainda não passei o primeiro bloco de prédios e já me cravam um cigarro. Respondo com um sorriso tímido de criança (Nunca dou nada a estes filhos da Puta!). Acelero o passo ao ritmo da música. Uma distorção aqui, uns pratos ali. Mais duas rampas e uma avenida e estou safo.
A respiração acalma, o passo também. Estou a poucos metros da escola. Aqui sou totalmente invisível. Retiro o maço da bolsa de cima da mochila. Puxo de um cigarro e fumo os minutos necessários para chegar exactamente 5 depois do primeiro toque. Assim não tenho de ter conversas de corredor com ninguém...não terei de gabar-me de ter feito um tag no carro da bófia, de ter lançado a mesa da sala 5.5 plas escadas abaixo, ou de ter feito desaparecer o cano de agua da wc (destoava da pintura). Faço-o sem intuito nenhum de obter visibilidade com isso. Não quero ser conhecido. Quero conhecer, e é por isso que o faço. Imagino e faço. Faço-o para dizer a mim mesmo que esta feito, que já fiz isso...que já vivi. Mas não me sinto vivo. E esses minutos de fumo e cinza são os únicos momentos em que sinto que estou em conformidade com o farrapo humano que sou.

Entro e sento-me. A reprovação de sempre. A falta mantém-se e desta vez excedi o plafon.
- «Desta vez temos de ter uma conversinha...com a tua mãe!»
Semicerro os olhos, cerro os punhos e subo para a mesa.
Antes de a stora fechar a boca de espanto, canto com todos os meus pulmões:
«Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s'oublier
Qui s'enfuit déjà
Oublier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
A savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
A coups de pourquoi
Le coeur du bonheur
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas»

Antes de desfazer a minha pose napoleónica o alvo comporta-se como tal - «Bem...acho que isso seria tema de uma outra aula...desta vez o Jacques Brel safou-te.» (passou a ter esse sentido a partir do momento em que acertei no centro). Muitos dos presentes desfizeram-se em risotas mas não a da 3ª fila 2ª mesa. Essa, fez questão que eu reparasse no decote intencionalmente desleixado. E, claro, reparei. Como não tenho muito jeito com os números e copas...digo apenas que chegava para encher a mão. E a minha não é pequena.
Passei o tempo que restava da aula a dissecar o meu sonho. Comecei por cortar todos as minhas ligações com a realidade com ajuda de um bisturi imaginário . Instantaneamente a voz da stora passou a ser ruído. Ruído como aquele que a televisão faz quando esta ligada, praticamente inaudível embora presente. Voltei a ver os pés...as coxas...os seios... Acordo da autopsia e estou de olhos enterrados na rapariga da 3ª fila 2ª mesa. O jogo é mútuo. O meu, embora, inconsciente. Só nos damos conta do toque de saída porque todos os restantes se levantam, e perdemos contacto. Visual digo.
No corredor, sigo a corrente que me leva(aparentemente) dali para fora. Sinto um toque leve, mas firme, no braço. Quem mais podia ser senão a rapariga da 3ª fila 2ª mesa (sou invisível para todos os outros). Parece que tinha feito uma amiga, seria o habitual numa situação destas. Mas não aqui. As grades que atravesso para entrar na escola, dizem-mo. Cá dentro, todos somos animais de jardim zoológico.
«Queres vir fumar uma?»
Sabia que ela queria apenas uma confirmação da sua história. O personagem ao vivo e a cores. Estava consciente disso.
«Baza» - disse eu.

Descemos a escadaria sem pronunciar uma única palavra. Também, se o fizesse-mos, seriam inaudíveis. Estava-mos a passar plo piso 3 e os putos e pitas(eu gosto de lhes chamar Putas) grunhiam toda a sua inocência perdida. Correntes, calças de roso, saias de farrapos, mini saias, saias cintos. Um mar de cores perdidas.
Chegámos ao exterior e ela agarra-me novamente, desta vez na mão. Já lá vai o tempo em que alguém me agarrara assim. Desde que deixei de acreditar em tudo. Vou seguindo-a. Atrelado a ela. Como se todos os passos dela fossem meus. Como num tango Argentino.


Chegámos ao "Cemitério". "Jardim das tabuletas", já o chamava o meu stor de História de 8ºAno. Jardim de memórias, de amores perdidos, de vidas passadas. A morte de bancos, arvores e relva feita. Mal chegamos ao pé dos "amigos" dela. A rapariga da 3ª fila 2ª mesa senta-se prontamente no colo de ninguém. Diz-lhe ao ouvido algo. E apresenta-me aos presentes - «Este dread subiu pra cima da mesa e cantarolou qualquer cena em francês!! E o melhor é que conseguiu com que a Rufino lhe tirasse a falta! Já viram!? Não dá pra acreditar! A R-U-F-I-N-O!!»
«Canta lá isso de novo pra nós!» - continua.
«Acredito que o françois deve cantar muito bem mas...faz lá isso pra gente!!!» - Interrompe um palhaço qualquer. Com todos os adereços. Rasta, buracos em todo o corpo, olhos pintados e monocicleta!
Sento-me longe de todos, e (ob)servo. Tanta alegria, tanto cinismo.
«Toma.» - diz ela.
«Isso é ChamiX?»
«Não, é melhor! Erva!»
Dei 3 curtos bafos e passei.
Rodou mais umas tantas vezes...e senti-me a flutuar. Era diferente de tudo o que tinha experimentado. Senti-me a atravessar a bancada...a bancada a atravessar-me. Todo eu era cemitério. Visionei os dígitos do dia. brinquei com eles fiz todas as combinações (ou serão arranjos?).
Os outros tocavam-se, beijavam-se e riam. Eu fundia-me com o próprio dia. O Dia era eu...eu era o Dia. As minhas pernas eram o 11, maio as mãos e a minha cara o ano. Os fios de cabelo 2, os olhos zeros, a minha boca 1. Tive flashes de imagens. Montes verdes...mar por todo o lado...chuva.
E fiquei assim o dia todo. A ver o dia passar. A ser o dia.
Quando passei a ser indivíduo, estava sozinho. Não sabia há quanto tempo ali estava. Mas não era pouco. O estômago apertou e fui comer qualquer coisa.

Os dias seguintes foram como esse. Passei por eles sem os sentir. Só a pensar no que tinha de fazer. Como fugir. Contei os trocos que poupei ao longo dos meses. E fabriquei a minha licença para a vida.

16 maio de 2001. A noite estava fria como eram tantas nesse mês.
«Adeus!» - disse escondendo o nervosismo.
Não obtive resposta. Era uma noite qualquer como tantas perdidas em frente ao televisor. E mergulhados no BigBrother, solidariedade Entre-os-rios ou outros...não se preocuparam em ouvir. Foi um erro.
2horas depois estava a comprar o bilhete de ida para Ponta Delgada, S. Miguel. Uma série de telefonemas, de "espere só um momento". «Não tem a autorização dos Pais?»
Já estava a espera...
«Claro, já me esquecia! Normalmente é o meu pai que compra o bilhete. Ou o meu avô. Mas como o meu Pai não tem tempo e o meu Avô está a minha espera lá...»
A minha mãe sempre disse que tinha jeito pró teatro.
«Sim, desculpe. E o seu Bi?
Obrigado. João Pires de Melo...Arminda Jesus Pires de Melo...
Ta tudo Ok...
Aqui esta o seu bilhete...Gate7
Não se esqueça de fazer Check In primeiro!!»
175€, a liberdade não estava barata naquele dia.