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quinta-feira, julho 15, 2004

História para não adormecer...

Era uma vez um menino.
Esse menino, sem nome, morava num bairro de pescadores da Trafaria. Esse bairro, sem nome, era de gente pobre. Mas vivia paredes meias com o bronzeador e as toalhas de gente rica, nos meses quentes.
Certo dia, o menino foi como tantas vezes até ao porão. Olhou para os reflexos do mar e ouviu os sussurros do mar. Fitou o mar durante tanto tempo que desejou fazer parte dele. E com esse desejo, o menino fez-se peixe. Mergulhou no mar e nadou. A pouco e pouco outros se foram juntando a ele formando enormes cardumes. O menino feito peixe nem queria acreditar na sua sorte. Nadava feliz, e erguia-se sobre a água em saltos olímpicos. Num desses saltos, reparou nuns estranhos bichos de bico laranja e corpos cor de prata que voavam em círculos acima de si.
Então, o menino feito peixe desejou ser gaivota. Das suas escamas fizeram-se penas e depois asas e o menino voou. Assim, o menino feito peixe feito gaivota voou em círculos como os seus companheiros do bando. De repente, voaram todos em voo picado em direcção ao mar. Mergulharam nele e roubaram um dos do cardume. O menino feito peixe feito gaivota nem queria acreditar que agora tinha no seu bico aquele que nadara a seu lado.
E desejou ser outra coisa. Desejou tanto que se tornou nessa, e noutra e outra. Tantas que chegou a ser Dragão de Komodo na Indonésia, Gato siamês em Gaza, ratazana na Índia. Cansado de tanto ser e não crer, desejou não desejar.
Mas o seu coração de criança fez com que desejasse mais uma vez. Desejou ser uma cegonha. É das cegonhas que as crianças vêm e assim traria meninos para junto de outros meninos para todos poderem brincar.
Então, o menino feito peixe feito gaivota feito dragão feito gato feito ratazana fez-se cegonha. Voou horas e dias e meses até chegar ao continente africano. Quando lá chegou viu crianças negras de pé descalço a chutar uma bola de farrapos. Ficou tão contente por ver tantas crianças juntas a jogar à bola que desejou ser como elas.
Então, o menino feito peixe feito gaivota feito dragão feito gato feito ratazana feito cegonha, fez-se menino e correu pela terra quente. Estava tão feliz que não reparou no clique que soou da terra. Tão feliz mesmo que não sentiu o elevar de um engenho explosivo até a altura da sua cabeça. A "PROM 1", conhecida como a "Bailarina", explodiu na cabeça do menino feito peixe feito gaivota feito dragão feito gato feito ratazana feito cegonha feito menino. E os estilhaços lançados pela carga voaram por 20 metros em todas as direcções cravando-se no craneo do menino que jogava a bola, trespassando o peito de outro. Um menino feito soldado feito homem, tinha colocado essa mina dias antes.

O sangue do menino feito peixe feito gaivota feito dragão feito gato feito ratazana feito cegonha feito menino, escorreu pela terra até ao lençol freático acabando por formar um rio que desaguou no mar.
O mar abraçava as rochas do porão do Bairro sem nome. O mar fez-se menino. E o menino feito peixe feito gaivota feito dragão feito gato feito ratazana feito cegonha feito menino feito mar feito menino virou costas e chorou.