Ela
Torcia os dedos. Enrolava-os, ocultava uns sobre outros, lubrificados pelo suor. Não era medo. Um leve tremor, uma hesitação. Se calhar não era nada. Abria a porta e o mundo ainda lá estava, parado, cinzento e feio como sempre. Ligava a televisão para a desligar de seguida. Espreitava entre cortinados pesados e grossos, sentava-se ao piano que desejava saber tocar. Os passos de salto alto no andar de cima. O cão que ladrava no terraço ao lado. A urina a cair como um jacto numa sanita algures. O som de um carro que subia a rua, sequência de sons da caixa de velocidades, o som que se extingue no virar da curva. Porque nada existe ao virar da curva. Lá, onde o som morre. Onde as pessoas curvam para não mais se verem. No fundo da rua, junto à sapataria de aspecto mal lavado. Pensava nela. Naquela. Não noutra qualquer. Já faz tempo que desceu a rua, que som do riso simples que enchia a sala se sumiu com um virar de curva. Malas não fez porque não havia. Não houve adeus, um bilhete, um beijo com um sorriso de um conforto pobre. Ela. Que talvez nem nunca tenha existido. Talvez desde sempre apenas ausência, apenas a palavra. Saudade.
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