A Máquina Fotográfica
Percorro as calçadas de Lisboa disfarçando a fome. Tenho 20€ e 2 cigarros no bolso. As pessoas mal me olham. Enojam-se quando o fazem. Mudam de passeio... mudam de cara. Chove a potes, cães e gatos e elefantes também. Toda uma selva cai em cima de mim. Esbofeteando-me ao sabor do vento. Talvez num qualquer outro dia estivesse preocupado, hoje não. Vendi o que antes era o meu lar (ali pros lados de S.ta Apolónia) por 25€ e 4 cigarros. Gastei os 5+2 em mágoas e cerveja.
Entrei numa loja de antiguidades, e lembrei-me de ti. Foi como se me chamasse, para logo cuspir-me para a cara. Daquelas verde-castanhopegajosas. Cor de dor, da mais pura! Uma máquina fotográfica como aquela que o meu pai tanto estimava (em vão). Um pedaço de lixo, de História para alguém... de dor para mim. Lembrei-me quando comprei aquela que era à profissional (100 contos no dinheiro antigo). Só porque um dia achei que eras linda demais para se perder. Linda demais para perder cada centímetro da tua cara, do teu sorriso... do teu olhar tímido quando dizia "Amo-te". Porque os teus cabelos eram sequoias como as da Amazónia... eram o ar que respirava. Os teus olhos eram como 2 planetas vermelhos, martes que eu orbitava com prazer... rendido. Eras o meu centro de gravidade, o meu sistema solar, a minha galáxia, o meu TUDO! Mas deixei-te fugir. Nem as fotografias ficaram.
Depois... depois, perdi o emprego. Tentei comprar amor mas... o amor não se compra. Vende-se por aí, dizem. Mas não se consegue comprar.
Sem dizer uma palavra pego na máquina, vou até ao "senhor" comerciante, e despejo o bolso no balcão. O "senhor" conta assim de alto o dinheiro mas, não se atreveu a tocar-lhe (pelo menos à minha frente). Acenou com a cabeça em jeito de "põe-te na rua".
Percorro a baixa, restauradores e entro na estação de comboios do Rossio. Pessoas atafulham-se e insultam-se por nadas. Mas calam-se quando chego ao pé delas. Até sustêm a respiração. Apneia, como fazem os caçadores de pérolas.
Ingratos são o que são! Já fui como qualquer um deles. Os mesmo gestos, a mesma correria. O mesmo ar enjoado. Revejo cada dia da minha mísera vida em cada um deles. Eles não imaginam um dia como o meu.
Entro no comboio, e reconheço algumas pessoas. Vejo que alguns demoram meses a ler o mesmo livro. Ou que fingem lê-lo só para parecerem cultos. Aquela senhora ali continua mal de amores... esconde as capas de livros eróticos (daqueles que se compram nos quiosques) com publicidade de hipermercados, brochuras de agências de viagens. Paraísos onde estive.
Puxo da minha máquina fotográfica e disparo. Rodo a película e disparo. Tantas e tantas vezes. Alguns fingem que não estão a ser fotografados... outros riem para a máquina, até. Pessoas que vejo todos os dias. À mesma hora, todos os dias. Quando peço esmola vestido como hoje... como sempre estou. Com a farda da banda filarmónica de sei-la-onde. Que comprei a outro como eu, por uma garrafa de vinho. Vestido de azul, como os meus olhos nos (longínquos) bons dias de sol.
Digo que sofro do trauma da guerra. Do stress. "Todos Sofremos", dizem eles. Se dissesse a verdade não iam perceber.
- SOFRO DO CORAÇÃO!!! E isto rasga-me o peito pior que qualquer bala!
Mas isso ninguém ia ligar. Mesmo assim não ligam. Mas dão-me trocos, para me calar. Para não tocar mais pandeireta, flauta, harmónica, eu sei lá!
Um casal de tolos, de apaixonados, falam com ajuda de tecnologia de ponta. Ela dentro do comboio ele fora. Há qualquer coisa nele que me faz parar. A princípio não percebi. Já lá vai tempo, desde a última vez que me olhei no espelho. Mas um olhar mais atento, pela objectiva, deu para perceber. Ele tinha o meu olhar. O olhar de condenado. De perdido.
As portas fecham-se. O comboio arranca. E o tolo corre... corre de telemóvel em punho. Falando, por entre respiração ofegante, no limite das sua forças... para podê-la ver mais um segundo. Disparei no último instante. No momento em que o comboio entrou no túnel, e o tolo ficou para traz.
Saio do comboio umas estações depois. Numa qualquer, aleatória. "Pim" "pam" "pum". "Trick"... "trick"... disparo mais umas últimas vezes. Até ao fim do "rolo".
Olho os carros de cima de um viaduto. Fumo os dois cigarros reservados para a altura. Para o momento. Para o "trick".
Sinto alívio sobre a forma de vertigem, quando o vento acaricia-me o corpo... e oiço os ossos quebrarem-se de encontro ao alcatrão. Mesmo ao meu lado está a máquina. De câmara escura aberta, vazia de rolo. Como eu.
Copyright : Philippe Halsman / Magnum Photos
Entrei numa loja de antiguidades, e lembrei-me de ti. Foi como se me chamasse, para logo cuspir-me para a cara. Daquelas verde-castanhopegajosas. Cor de dor, da mais pura! Uma máquina fotográfica como aquela que o meu pai tanto estimava (em vão). Um pedaço de lixo, de História para alguém... de dor para mim. Lembrei-me quando comprei aquela que era à profissional (100 contos no dinheiro antigo). Só porque um dia achei que eras linda demais para se perder. Linda demais para perder cada centímetro da tua cara, do teu sorriso... do teu olhar tímido quando dizia "Amo-te". Porque os teus cabelos eram sequoias como as da Amazónia... eram o ar que respirava. Os teus olhos eram como 2 planetas vermelhos, martes que eu orbitava com prazer... rendido. Eras o meu centro de gravidade, o meu sistema solar, a minha galáxia, o meu TUDO! Mas deixei-te fugir. Nem as fotografias ficaram.
Depois... depois, perdi o emprego. Tentei comprar amor mas... o amor não se compra. Vende-se por aí, dizem. Mas não se consegue comprar.
Sem dizer uma palavra pego na máquina, vou até ao "senhor" comerciante, e despejo o bolso no balcão. O "senhor" conta assim de alto o dinheiro mas, não se atreveu a tocar-lhe (pelo menos à minha frente). Acenou com a cabeça em jeito de "põe-te na rua".
Percorro a baixa, restauradores e entro na estação de comboios do Rossio. Pessoas atafulham-se e insultam-se por nadas. Mas calam-se quando chego ao pé delas. Até sustêm a respiração. Apneia, como fazem os caçadores de pérolas.
Ingratos são o que são! Já fui como qualquer um deles. Os mesmo gestos, a mesma correria. O mesmo ar enjoado. Revejo cada dia da minha mísera vida em cada um deles. Eles não imaginam um dia como o meu.
Entro no comboio, e reconheço algumas pessoas. Vejo que alguns demoram meses a ler o mesmo livro. Ou que fingem lê-lo só para parecerem cultos. Aquela senhora ali continua mal de amores... esconde as capas de livros eróticos (daqueles que se compram nos quiosques) com publicidade de hipermercados, brochuras de agências de viagens. Paraísos onde estive.
Puxo da minha máquina fotográfica e disparo. Rodo a película e disparo. Tantas e tantas vezes. Alguns fingem que não estão a ser fotografados... outros riem para a máquina, até. Pessoas que vejo todos os dias. À mesma hora, todos os dias. Quando peço esmola vestido como hoje... como sempre estou. Com a farda da banda filarmónica de sei-la-onde. Que comprei a outro como eu, por uma garrafa de vinho. Vestido de azul, como os meus olhos nos (longínquos) bons dias de sol.
Digo que sofro do trauma da guerra. Do stress. "Todos Sofremos", dizem eles. Se dissesse a verdade não iam perceber.
- SOFRO DO CORAÇÃO!!! E isto rasga-me o peito pior que qualquer bala!
Mas isso ninguém ia ligar. Mesmo assim não ligam. Mas dão-me trocos, para me calar. Para não tocar mais pandeireta, flauta, harmónica, eu sei lá!
Um casal de tolos, de apaixonados, falam com ajuda de tecnologia de ponta. Ela dentro do comboio ele fora. Há qualquer coisa nele que me faz parar. A princípio não percebi. Já lá vai tempo, desde a última vez que me olhei no espelho. Mas um olhar mais atento, pela objectiva, deu para perceber. Ele tinha o meu olhar. O olhar de condenado. De perdido.
As portas fecham-se. O comboio arranca. E o tolo corre... corre de telemóvel em punho. Falando, por entre respiração ofegante, no limite das sua forças... para podê-la ver mais um segundo. Disparei no último instante. No momento em que o comboio entrou no túnel, e o tolo ficou para traz.
Saio do comboio umas estações depois. Numa qualquer, aleatória. "Pim" "pam" "pum". "Trick"... "trick"... disparo mais umas últimas vezes. Até ao fim do "rolo".
Olho os carros de cima de um viaduto. Fumo os dois cigarros reservados para a altura. Para o momento. Para o "trick".
Sinto alívio sobre a forma de vertigem, quando o vento acaricia-me o corpo... e oiço os ossos quebrarem-se de encontro ao alcatrão. Mesmo ao meu lado está a máquina. De câmara escura aberta, vazia de rolo. Como eu.
Copyright : Philippe Halsman / Magnum Photos
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